Alergia de lâmina de barbear, comida azeda, roupa lavando na máquina, som de trator na rua. Um canhão do século XVIII que encontraram numa obra do metrô, peças fúnebres, pratos, jarros, porcelanas. Prataria colonial para satisfação de saudosista branco. Tatuagem na perna esquerda e na coxa direita. Coceira insistente da alergia. Saudade de praia, ali onde fico sozinho, apressado pra ir embora.
“Quem soul eu?“, diz a cantora. O piso da minha casa seca rápido, basta um vento da varanda entrar pela porta da cozinha e pela janela do quarto, bastam os minutos de descanso sentado no chão olhando pro vazio, pro nada. É estranho sentir o gosto de fome e nenhuma vontade de comer, de saber que o corpo precisa de comida, mas não há gosto o suficiente. Energético me dá sono, não bebo café, suco de maracujá me deixa acordado. E eu ainda prometi um suco de abacaxi com hortelã e camomila pra uma colega de trabalho. Vê se pode!
Encontro teus olhos de longe, sinto seu abraço forte, mas já consigo respirar sem me afobar. Ouço tua voz mansa, te vejo indo embora, te vejo meio longe, meio perto. Assim como quem finge saudade, sabe? Ou como quem finge não se importar, porra. Paro. Volta pra casa. Aqui tem um aconchego que me dá sono, não há vitalidade grande por aqui. Ouço os aviões passando e já sei que os da Latam fazem mais barulho do que os da Gol. Me pergunto todo dia sobre o tempo. É, gosto muito das frases feitas por orações curtas e das orações poucas, das orações rápidas. Me pergunto sobre o tempo e me vejo mais uma vez querendo correr feito desespero pelo tempo.
Sei que é aqui que devo estar, que é preciso calma, é dada a hora pra caminhada e não da corrida. Me assusta um pouco estar agora mais tempo fora de casa do que dentro. Do que dentro… você me acha estranho? Você me vê? Esperei por notícias, mas você, assim como eu, não deu o ar das caras. “Quem soul eu?”, diz a cantora. Que bagunça eu estou fazendo aqui?!
O som estrondoso dos aviões passando sobre nosso teto. Camisa preta de academia, meias pretas no varal, roupas espalhadas na cama, roupas desconhecidas jogadas no chão, bifurcação de línguas, olhos distantes. Calça vermelha, sono desregulado, metrô parado atrasado na estação. Blusa, agora a vermelha, próxima a cor vinho.
Aviso de “atenção abelhas” pixado com tinta branca no chão da praça, homem bêbado na calçada, luz do poste recém trocada. Padaria vendendo sonho, buzina do trem, mancha de azeite de dendê na camisa branca da moça que vem na minha direção. Criança olham pra cima a cada avião que passa na esperança de ver a baleia que anunciaram nos jornais. Cerca de cinco segundos, é o tempo que ela seria vista nesse pedaço da rua. Já não é possível esperar mais, nem pela baleia, nem por você, nem pela democracia.
Abraço é sufoco, é demais. Abraço é proximidade pra quem está longe e quer ficar perto. Abraço é o que a política não nos dá, é como a saudade do futuro, de nos vermos bem. A baleia voando nos céus da cidade era uma tentativa de novidade, algo para nos surpreender. Talvez essa baleia tenha vindo só pra gente poder esquecer da cidade. Você fez isso? Você olhou pro céu a procura dela?
É muito difícil reconhecer o próprio corpo. Olho para a minha sombra a procura de respostas, a procura das crases, das vírgulas, das acentuações corretas. Olho para o espelho, para a conta bancária, para a planilha que contabilizo meus gastos mensais. Não te olho mais como antes. “Esse é o fim das tentativas”, diz o cantor.