Um certo circuito de artes visuais, e falo especificamente de uma produção artística de autoria branca, parece ter ficado preso na história da arte institucional do século passado. Esse circuito, fechado, por sinal, esqueceu que para habitar hoje o terreno institucional do museu é necessário no mínimo responsabilidade e senso de partilha. Responsabilidade para com os espaços, para com a história e, sobretudo, para com o público. Ora, toda produção artística – sem generalizações e reducionismos de minha parte, óbvio – vai necessariamente, ao se tornar pública, criar algum tipo de relação ao ter contato com o público que a acessa. E senso de partilha, já que não é possível mais habitar um espaço social e cultural, como um museu, sem compartilhar e incorporar práticas de partilha. Aproximação e repulsa não me parecem ser ambivalente, mas sim, totalmente opostas em vias da experiência dos corpos que acessam (ou não) esses espaços.
Imagine grandes salões brancos iluminados por uma luz branca dura. Formas geométricas são figurativamente ‘desenhadas’ nas paredes igualmente brancas expondo as camadas de tintas antigas e reboco. Esse reboco descoberto tenta forjar para si uma ficção sobre um tempo que estaciona em si mesmo, não circula, não se transforma, apenas se endurece no seu próprio cimento sem vida. Um espaço oco, vazio e seco, de uma espacialidade que se conforma em não ver gente habitando seus próprios espaços construídos com este objetivo. Um espaço vazio que se entendeu no conforto que é em existir na ausência de sujeitos.
Estou chamando de vazio o que a exposição intitulada “Desenhos – geometria imperfeita, cavidades dilatadas” executa ao ocupar apenas a superfície das paredes brancas propondo expor o seu reboco, numa tentativa de entender a sua arquitetura e a sua espacialidade. Ao fazer isso, a exposição ignora totalmente o fato de que um museu não é composto, de maneira alguma, somente por suas paredes, mas sim, por todas suas relações com o seu entorno, seu público, seu acervo, seus valores simbólicos, sociais e culturais, seus jogos de poder e suas construções históricas. Ou seja, a exposição esquece que um museu não é apenas a sua edificação.
Bom, o que representa, no Ceará de 2022, compreendendo a atual produção contemporânea no campo das artes visuais em atravessamento com outras linguagens artísticas, uma exposição ocupar com o vazio todo o prédio de um museu voltado para a arte contemporânea? Esse espaço vazio da exposição, ao meu ver, parece ignorar, deliberadamente, toda uma produção artística que não está mais calcada na retórica da arte conceitual, de vertentes do modernismo e suas formas estéticas de produção de sentido.
Voltando ao início: que relações entre responsabilidade coletiva e senso de partilha essa exposição consegue alcançar? Mais do que questionar o valor estético da tal intervenção artística nas paredes do museu, que não é meu foco aqui, pelo contrário, me interessa é, no fundo, propor outros enunciados que rasgue e realize fissuras menos superficiais e mais implicados. Esse reboco exposto é a “obra” e o que restou de tinta branca e de foco de luz é então a moldura? Aos moldes de quem e para que rota de caminho a exposição? De quem a quem? Esse “quem” que acessou a exposição compreendeu de fato todas as questões que a curadoria e que o artista se propuseram a discutir? E mais, a equipe do educativo conseguiu se apropriar dessas questões propostas o suficiente para poder realizar mediações entre obra, artista e público ou o sentimento de recusa também é compartilhado pela equipe do educativo?
Ocupar aqui diz respeito ao fato de que ao estar lá, dentro das fronteiras da institucionalidade do museu, do seu espaço físico e de sua programação, essa exposição impossibilita que outras exposições também estejam. E aqui surgem outras perguntas: quais são os critérios curatoriais e institucionais que levam o museu a optar ou não por um perfil de exposição em detrimento de outros perfis? Como isso está articulado dentro do seu plano museológico, de suas práticas educativas e de suas políticas de diversidade, inclusão, acessibilidade e permanência? A existência dessa exposição, num contexto regional especifico e neste museu específico, faz com que o próprio museu se esquive de discussões que ele mesmo tentou, por diversas formas, minimamente se integrar. Discussões essas que não são “novas” e nem surgiram de uma explosão de movimentos e/ou de modismos intelectuais, como alguns tentam dizer; essas discussões e debates são vivos e surgem a partir de contextos de vidas múltiplas. Falo da produção intelectual, artística, cultural e de conhecimento das pessoas pretas, indígenas, dissentes das normas de gênero e sexualidade, periferias e interiores. Falo de autorias que não se limitam a espacialidades, pelo contrário, expandem relações entre territórios e visualidades, imaginação, segredo e alteridade, tempo e quebra. “Ocupar” para essas gentes não é verbo simples de ser conjugado.
Outro ponto importante que é emergido por conta desse contexto da exposição é perceber como as armadilhas da representatividade e da visibilidade de superfície atuam dentro dos sistemas de arte, em que num determinado período há uma certa inserção temporária de corpos que nunca habitaram esse espaço, e noutro momento, noutro ano, há um retorno a um certo estado da arte e suas estéticas mais tradicionais, formais, ocas e reduzidas a experiência do mercado de arte. Esse retorno à uma tal “origem” me soa mais como um aviso de que: “bom, vocês nunca fizeram parte daqui, portanto, continuarão sem fazer parte”. É preciso sempre lembrar que toda presença é uma negociação e que as nossas presenças também são concessões. E na esfera da historicidade da arte cearense, não estamos para termos nossas histórias documentadas, arquivadas e preservadas: foi dessa forma que eles, os tais “pesquisadores da história da arte” definiram. Estamos lá apenas para preencher de maneira efêmera enormes lacunas existentes e também para limpar uma história precária escrita por mãos brancas, como já bem disse Beatriz Nascimento.
Nesse sentido, ocupar um espaço museal com o vazio da geometria, da linha seca e das formas ocas de um reboco, não me parece ser justo com as tantas gentes que produzem sentido e conhecimento múltiplo e penam para minimamente conseguir habitar esse terreno complexo e difícil de ser acessado que é o sistema de arte. Ora, se a arte branca cearense estacionou no tempo, nesse tempo cronológico mesmo da história da arte igualmente branca, porque então nós teremos que permanecer também nesse mesmo estacionamento já que nunca fizemos parte dele? Porque nosso silêncio está nos últimos dois meses falando muito mais alto do que nossas histórias, nossas obras, nossos conhecimentos, nossas produções? O espaço oco vai vencer mais uma vez? Reproduzir formas e lógicas coloniais de poder nas artes nada mais é do que perpetuar a violência da ausência, do não acesso, da não permanência de corpos e sujeitos que sempre foram expulsos do museu.
Mas o que está em jogo aqui não é essencialmente o que a autoria branca da obra do vazio quis ou não apresentar ao público, é muito mais sobre o gesto simbólico que a própria exposição suscita ao ser posta no museu e as operações repetitivas que ela executa junto à outras exposições de igual perfil, e as anulações que elas executam. A questão aqui não é apenas esses gestos repetitivos trazidos pela exposição, mas a própria performance distanciada e apática do próprio museu, que opta por não expandir em si, a partir de si e para além de si mesmo.
Honestamente, aqui já não nos interessa mais discutir sobre a arquitetura do cubo branco e seus valores simbólicos, muito menos com seu reboco raspado de poder e perspectivas que enxergam a arte e a produção de sentido no campo da cegueira seletiva. Já não nos interessa a arquitetura que mais evidencia o nada e seu valor ficcional do que as possibilidades de transformação do real. O que nos interessa é, de certa forma, a recusa. E sabemos bem recusar?(!) Em suma, a não continuidade de muitas dessas lógicas, e da própria exposição, é um direito de resposta a um conjunto múltiplo de artistas que buscam mais do que visibilidade, e sim, presença e permanência.
No mais, eu não tenho compromisso algum com as artes visuais de autoria branca, e o meu pessimismo continua vivo.