1.
Antes de tudo, não sou brasileiro. Negar essa nacionalidade é essencial para mim. Escrevo como corpo nascido no que prefiro chamar de país ainda não-independente intitulado Nordeste – haverá ainda outro nome pra chamá-lo, enquanto não, uso esse. Habitar o Nordeste é habitar as contradições, e para assumir elas preciso antes anular completamente todo o resto da nação continental e inserir uma frissura que se abre da crostas entre nossa fronteira, e nela preencher de água salobra – tão salobra que mata quem ousa atravessar a nado.
É para além do coronelismo, do paternalismo e do discurso esquerdo-branco de uma suposta resistência política-institucional que aponto os olhos e tento ouvir. É fugindo e abortando toda forma de romantizar esses territórios nordestinos e as formas de vidas que aqui existem. É implicando as hegemonias e o supremacismo que aqui também operam. Nordeste também é território colonial, violentado, saqueado e sacrificado, não só pela metrópole do lado de lá do Atlântico, mas também a metrópole localizada logo mais abaixo, do lado de cá, ali por volta da região do Trópico de Capricórnio.
Não dá pra ignorar a violência. Não é possível não viver sem ela. Poder e dominação foram e são essenciais. Independência é ficção inventada para acalentar senhores e silenciar dissidentes, soterrar motins e comunidades, encerrar rebeliões e exterminar vidas.
2.
Bom, se anulo totalmente o Brasil, e finco pensamento e formulações daqui desse lado da frissura – aqui no Nordeste -, também não me interessa saber (ou relembrar) os contextos do lado de lá. A busca por especular uma nação é o que me resta.
Não me interessa as distopias imaginárias vinda da nova belle epoque, que ao encontrar nas artes e no cinema seus dispositivos de apoderação e dominação das narrativas, resolve-se que além de ter o domínio sobre a realidade aos seus próprios pés também tem domínio sobre as distorções dessa própria realidade. Ou seja, quem consegue pensar bem uma certa distopia é também aqueles que não vivem nenhum tipo de distopia, porque a distopia para eles é vista -somente- enquanto produção imaginária e literária sem nenhum engajamento ou implicação social.
Distopia para eles não é um campo para se repensar o mundo e fabular outras realidades possíveis – como é para muitos de nós – e sim, uma forma de tentar ocultar que eles são e sempre serão parte da hegemonia.
Quando eles criam distopia é no jogo de: especulação imobiliária, mesmo morando longe das ARD, e nunca tendo passado pelo risco da desapropriação; violência policial, mesmo não sendo eles os alvos das munições perdidas; estado opressor, mesmo estando eles inseridos do circuito cultural e de visibilidade; resistência, mesmo sendo eles
Quando eles criam distopia é invenção, inovação de linguagem, prêmio de criação de atmosfera, melhor direção – apesar de roteiros mal acabados; já quando alguma de nós falamos das distopias que já nos atinge somos ressentidos e pesados demais, categorizados como periféricos, passíveis a captura, mostra paralela não competitiva, relegados ao acaso.
Distopia é armadilha, e não me interessa integrar a distopia-branca da Nova Belle Époque – supostamente aliada, supostamente engajada, supostamente decolonial.
3.
O mundo já acabou.
Brasil não existe.
Para meus pares e ímpares, eu digo: Não caia na armadilha do colonizador.
Detalhe da obra Independência e morte, 2020
Clébson Francisco
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