Texto publicado no catálogo da quarta turma do Curso de Realização em Audiovisual, da Escola Pública de Audiovisual Vila das Artes.
Com os olhos fechados, sente a água em correria caindo do alto e desabando no rio. Cachoeira longa vazando no tempo. Ao levantar das pálpebras, vê uma muralha de espelhos brotar da terra em cada uma das margens do rio e subir para o alto, chegando bem próximas a copa das árvores. Espelhos tão limpos quanto a própria água. Um que reflete o outro, numa profundidade infinita, como o tempo infinito. Caminha, então, lentamente entre as pedras rio abaixo. Com cuidado, com calma. E vê gente surgindo nos espelhos: vê muita gente chegando, caminhando em direção as margens.
Lá, no meio do rio, encara firmemente com os olhos atentos o seu arredor, para os espelhos sem fim. Vê um que chega mais perto da margem e que atravessa o espelho, permitindo a quebra da separação. Se assusta. A garganta arranha, o peito começa a formigar e um grito sai pela sua boca. É dança das cordas vocais, é ensaio da bateria dos pulmões, é o ritmo das sentinelas que agora atravessam o espelho infinitamente.
Se vê então no espelho e percebe a água profunda que molha os seus pés seguir o curso do rio, mas sem carregar seu corpo; enxerga a própria imagem sendo refletida e projetada nessa grande tela transparente, nesse espelho-infinito. Só agora entende que os outros dentro do rio, são vários dos seus, de sua gente de pés molhados. Olha com tanta atenção que se perde no deslumbre; mas não, não pode ficar ali imóvel enquanto a sua gente está atravessando o caminho, quebrando o espelho e entrando/saindo. Aqui, entre o medo e a coragem, o movimento pede para seguir o seu rumo, pois aqui um corpo não estaciona quieto.
O movimento pede, o movimente exige. Não se deixará contaminar pelo meio em que for lhe designado, não permitirá beber do veneno colonial disfarçado de doçura angelical. Seus passos não são só seus, eles vêm de longe, de bem distante, e continuam caminhando teimosos em terras à revelia do mundo.
A fala e o olhar agem, a partir de agora, como seus dispositivos de ação direta e, atravessarão juntos uma permanente construção de travessia. Não basta só o olhar, o olho precisa abrir uma fenda nos muros, rasgar a retina colonial, destituir a branquitude e assustar os fantasmas. É o pressagio dum olhar que confronta(rá) a realidade instaurada – aqui, ali e aculá – onde se gira possível a reinauguração do olhar, do sentir, do fazer e do viver. Movimento é ancestral, ancestral é tecnologia, é ciência.
Entre o falar, o ouvir, o ver e o enxergar da imagem que surge em cascata desta cachoeira: o tempo quebrando, o espaço dilatando. Entende agora a missão, molha pela última vez as mãos e entende que fazer imagem é ajuntamento, é aquilombamento, é cuirlombismo. Não vai fazer trabalho de formiga, quer ser planta verde listrada: comigo-ninguém-pode, com a gente ninguém pesa. É, caboclo não tem caminho para caminhar, caminha por cima das folhas, por baixo das folhas, por todo lugar. Pede bença, pede licença ao tempo e vai. Tudo o que era nosso e eles tomaram, agora vai ser nosso de volta, diz. O cinema é nosso, a rua é nossa, a cidade é nossa, a galeria é nossa, a imagem é nossa, o tesouro é nosso. Tudo o que era deles agora é nosso! Sobe no lombo do cavalo, e antes de atravessar o entre, ouve seu peito lá no fundo cantar um ponto que diz: não tem volta.
Por Clébson Francisco, janeiro de 2019.