Logo quando acordo, tomo um copo d’água. Ponho vírgulas em lugares errados, às vezes de propósito, às vezes sem saber qual lugar elas queriam estar. Erro as conjunções, as sintaxes, as métricas. Às vezes, tento correr atrás das relações de concordância, de subordinação e de ordem. Mas nunca sou prolixo, esmoreço antes mesmo de cansarem do que falo, me calo logo quando quero, falo de menos e vou seguindo, mesmo que falem demais.
Lá na rua do apartamento antigo tinha um rio, ou eu suponho que tivesse, pois em toda chuva uma corrente d’água desci a rua numa procura pelo que restou desse rio. Tive que atravessar o rio diversas vezes logo cedo, na saída e na volta. Na mesma época desisti dos guarda-chuva e apostei nas capas de chuva, mas percebi que elas esquentavam mais do que um abraço, e logo me davam calor. Suando por dentro enquanto cai água lá fora.
Eu não sei responder essa pergunta. Saberia se fosse outra, essa não. Você dormiu cedo, acordou de madrugada e tentou dormir novamente. O quarto é abafado e do ventilador sai um bafo quente, um sopro seco. Pela manhã, acorda mais cansado do quê quando dormiu. Há um peso no ar da casa que tende a te forçar a fazer algumas saídas ao longo do dia: uma pra se exercitar, outra pra comprar pão, outra pra ir no açaí da esquina.
Algumas das plantas ficam secas com o sol forte da tarde, mas o pôr do sol alaranjado é bonito quando entra pela janela do quarto; ver o reflexo dele indo se estampar na porta da geladeira é uma daquelas distrações necessárias pra se respirar. Acredito que o melhor a se fazer, é sempre lembrar quem você é, mesmo que só saiba no futuro.
Comprei um umidificador quando o ventilador quebrou e dormi longas noites deitado no chão do quarto com uma névoa pairando sobre mim. Sobre minhas costas, tem o peso de sempre querer uma fuga e nunca ter pernas o suficiente para correr. A nossa lombar não foi feita para suportar traumas da nossa cabeça, não!
Vejo uma cruz de led num posto de gasolina. Volto pra casa num silêncio estranho, mesmo sendo o horário de pico na Duque de Caxias e mesmo que da calçada dê pra sentir o calor dos ônibus quando param nas esquinas. Percebi que não sinto mais raiva das coisas, me soltei dessa antiga necessidade de sempre (ou quase sempre) apontar pra algo e ter aversão a aquilo. Não odeio mais a cidade, mas tão pouco quero estar nela.
A casa é gelada, tem uma umidade que nos deixa doentes. Tem um vento que vem da rua famoso de quem vem visitar. A gente chega aqui e já dá sono, né. Sempre disse minha vó. Meus papéis, esboços de músicas, desenhos de possíveis igrejas, recortes de revistas de cosméticos de onde pegava pessoas com roupas de baixo. Mulheres e homens meio desnudos. Todos brancos e brancas. A casa é úmida, tem mofo, cupim no telhado. Ela está sempre molhada, há anos que não vimos ela completamente seca. A cozinha é molhada, o banheiro é molhado, as paredes da cozinha, da área de serviço e do banheiro são todas molhadas. Goteiras são frestas no tempo.
Vou repetindo, não é possível adiar o que queremos que seja para ontem. Eu sei, estou falando no tempo presente, e não no passado. Mas essas palavras falam sobre um tempo passado: já não estamos mais nessa casa, ela está lá feito uma caverna, um escombro, uma memória esperando virar retrato de fotógrafo viciado em ruína.
O vento que sai dele é quente, o apartamento é abafado, ao longo dos dias o chão começa a ficar com uma camada pegajosa como se tivesse suando, grudento, como se tivesse derretendo. Eu varro esse chão dia sim, dia não. Recolho coisas espalhadas, dia sim, dia sim. Lavo roupa todo fim de semana, as vezes dois dias na semana (não gosto do cheiro que meu suor deixa na aninhas camisas depois que uso). O ventilador, guerreiro, tenta soprar um vento ameno, mas as vezes desiste e sopra um bafo agonizante.
É sempre bom lembrar que não sei usar a crase. A varanda é grande!, e isso é a parte boa, mas tenho medo de altura e o guarda-corpo é frágil. Coloquei um papel adesivo branco em quase todo o vidro para não precisar ver a altura da queda. A varanda daqui não é tão grande, mas são duas varandas, e agora as plantas estão se espalhados pelos muitos cômodos desordenadamente ocupados.
Me pergunte algo complexo o suficiente pr’eu responder só uma parte da pergunta e deixar o restante em suspensão. Olha pra mim com cara de quem quer bater no mundo, como quem deseja a vida e quer abandonar o barco da morte. Uma pergunta longa que pareça não nos levar a nada mas que diga muito da nossa vontade de estar junto. Hoje é o dia em que os sonhos recomeçam, apesar do cansaço e dos atropelos, e teimarão, ao longo dos próximos dias, em não morrer.
Essas palavras foram escritas em momentos diferentes sobre lugares diferentes que morei nos últimos anos. Hoje, morando em outro lugar, juntei todas elas. Esse lugar será somente mais um lugar onde já morei na vida.





