Sempre antes de dormir eu escutava um barulho de gente correndo bem perto de mim. Tipo quando você mora numa casa de dois andares, e quando tem alguém no andar de cima andando com a pisada muito forte ou arrastando algum móvel, e tu que está embaixo ouve o som bem alto como um tremor. Pois é, só que nossa casa não é desse tipo, é só um andar, e mesmo assim, eu escutava essas pisadas de gente correndo.
Era uma corrida bem rápida, cerca de uns 30 segundos, e como toda corrida, o som não era algo continuo. Vinha fraco, aumentava e depois diminuía até desaparecer. Assim, como se a pessoa passasse correndo feito vento do meu lado, por trás da parede que separa nossa casa da casa vizinha.
Estranho lembrar nisso agora pouco antes de dormir. Mas desde que me mudei eu nunca mais ouvi esses passos. Aqui do alto do décimo quarto andar só ouço a avenida longe, os poucos vizinhos, um liquidificador sempre as 7hs vindo do vizinho do 1404, o único apartamento do meu andar que está ocupado por gente. Ele chega por volta das 18h, encosta a porta e se escorando na parede tira pacientemente os sapatos logo na entrada, só depois de uns dois minutos é que tranca a porta. Três giros pro lado esquerdo!
Solta a mochila na mesa de vidro, a chave num gancho em alguma parede. E vai tirando a roupa deixando ela cair pelo chão da sala mesmo, casaco, camisa, cinto com fivela de ferro, calça social justa nas pernas. Permanece de cueca sem meias. Daí ele liga a televisão, e a partir daí ouço os sons mais abafados por causa dos três jornais que ele assiste um após o outro.
As nossas salas são coladas uma na outra, e como trabalho em casa praticamente todos os dias, acabei me acostumando as notícias que ele ouve até umas 22hs. Eu já tava deitado por causa de um crise de enxaqueca e por volta das oito, quase nove, me vi num apartamento escuro e completamente silencioso. Foi aí que percebi que naquela noite ele desligou a televisão antes do fim do segundo jornal. Não ouvi uma única voz de repórter, sirene, buzina na avenida, nada. Comecei a achar que eram os meus ouvidos abafados mais uma vez por causa da inflamação que vez ou outra volta. Bicho ruim quando tem problema de saúde, tem vários duma vez. Mas não.
Não eram os meus ouvidos. Me movi pelo apartamento, e cada movimento meu parecia que se amplificava e ressoava forte, cada mexida em qualquer coisa já denunciava minha presença em meu próprio apartamento de 63 metros quadrados. Apertar o interruptor da luz da cozinha, por exemplo, pareceu acionar uma rasga-lata. Comecei a achar que era eu que poderia ser o observado, e que o vizinho do 1404 mapearia todos os meus passos tal qual eu faço com ele. Arritmia bateu. Senti meus olhos mais cheios do que antes. E tive medo.
Lá em casa eu ouvia os passos de corrida geralmente no meu quarto, as vezes no banheiro, e também na sala. Na última reforma que teve, antes de eu me mudar, os pedreiros encontraram pedaços de pano quando faziam buracos no chão para assentar as colunas de concreto. Quer dizer, eu encontrei enquanto eles tinham saído no horário do almoço. Eram pequenos pedaços bem finos de tecido, acho que de algodão. Fui tentando tirar eles das paredes daquele buraco no chão, alguns se rasgaram mais do que já estavam. Pensei que poderiam ser esparadrapos. No bairro em que eu morava quase todas as esquinas tinham um pé de pião roxo, em uma dessas esquinas, bem onde ficava a casa de minha avó, tinham três pés, um em cada ponta. A quarta ponta da esquina só não tinha porque era a calçado dos fundos de um mercado.
Teve uma época que esse mercado foi assaltado várias vezes, lembro de uma vez que aconteceu um dia depois que uma senhora de idade foi acusada de querer roubar alguns produtos de lá. Ela respondeu com raiva e tristeza o insulto do dono do mercado, saiu sem comprar nada, e foi gastar sua aposentadoria noutro mercado, talvez nas mercearias pequenas, ou mesmo no grande supermercado que abriu lá embaixo na avenida. Ela precisaria andar mais, descer a Carlos Jereissate inteira, mas o orgulho dela ficaria forte e de pé, com as contas do rosário sendo trançadas à medida que caminhava ruas e becos abaixo, atravessado dois sinais e caminhando uma subida até o supermercado.
Nunca vi essa senhora, nem sei seu nome, mas lembro dessa história toda vez que entro num mercado de chinela e bermuda rasgada. Voltando para casa, a moça apertou a bolsa contra o próprio corpo e acelerou o passo quando percebeu que eu estava logo atrás dela. Mal sabe ela que sujeito que aprendeu a correr do capitão do mato sabe muito bem como despistar de uma branca qualquer, sabe acelerar o passo, causar medo, e ainda fingir sorriso simpático no canto do rosto.
Mas a coisa é que eu resolvi sair do apartamento, calcei a mesma bermuda rasgada e uma camisa de manga longa, um sapato preto e a carteira. Nove da noite numa quarta-feira, olhei pra janela e vi lá embaixo o transito calmo, o mercado da esquina ainda aberto.
Fecho a porta olhando em direção ao 1404. Ouço a maçaneta girando e ele aparece na porta dizendo “Você não quer entrar? ” Hesitei, olhei nos olhos dele, mas não consegui responder. Poderia ter me apressado, fingir que não escutei e deixar pra pedir desculpas depois quando vê-lo no elevador meses depois. Mas dessa vez não, resolvi aceitar. Resolvi propor ficar lá dentro do apartamento a noite toda, sair só na espreita lá pras seis da manhã, quando eu acordo pra ir pro trabalho, um pouco antes dele ligar o liquidificador e fazer seu mix vitamínico. Eu ainda não entendi porque ouvia aquela gente toda correndo dentro das paredes e no chão de minha antiga casa, mas apreendi naquela manhã que mix vitamínico é muito bom pra dar sustância pra quem é atleta, assim como o meu vizinho do 1404 é.





