1 – Corpo
O corpo não existe, não tem nada aqui, só o vazio, só o som de explosões e de cortes ágeis e agudos que arranham os ouvidos. O corpo vai acabar, e não tardará muito. Assim como o tempo que não existe, como a cor, como a ficção, o corpo vai acabar. A única coisa que sobra é a dor e o trauma: ambos permanecem vivos como fósseis que esperam o momento exato em que alguém os encontrará e trará de volta a superfície. A dor e o trauma de alguém que agora será de outro alguém.
Somos irmãos, meio parecidos em altura, a mesma idade, o mesmo tom de voz, só a visão é que é diferente, mas de resto é tudo muito igual. Mas como irmãos, também diferentes, pensamos e olhamos para direções opostas e sabendo exatamente qual posição o outro está olhando. Mesmo que de costas um pro outro e caminhando em direções opostas sabemos exatamente por onde o outro vai. Eu te olho como quem sente saudades, como quem queria abraçar mas não pode, não quer, não tem forças. Te olho olhando para uma fotografia antiga minha guardada num álbum de capa lilás.
Recentemente senti espasmos, contrações involuntárias contínuas e dores nas costelas. Recentemente esqueci o que ia falar, como que fala e como que chega junto e puxa assunto, como que continua junto e permanece em uma conversa sem que se tenha aprontado todos os assuntos seguintes. Recentemente fiz compras que se estragaram na geladeira, lavei a casa e dormir demais, perdi um filho de alguém, o cachorro morreu na vizinha, as plantas sumiram da sala e o porteiro fugiu com a esposa de outro alguém. Recentemente trocaram o piso dos corredores do condomínio, instalaram corrimão nas escadas, mas ainda não consertaram meu interfone.
Recentemente esperei por uma entrega, esqueci um boa noite, deu outros boas tardes e fui ignorado. Xinguei por detrás do calor da máscara de proteção e observei o pequeno caroço que tem logo acima da minha sobrancelha direita. Pesquisei produtos que nem preciso tanto assim e acabei comprando outro que realmente não preciso. Olhei para as paredes brancas pensando por que motivo não pintei elas como imaginei antes de chegar até aqui. Elas continuam brancas.
2 – Sábado
Sábado foi o dia que o sol resolveu não aparecer, e mesmo assim, deixou o rastro de calor por aqui. Um calor desgraçado, desses que te deixa doido do juízo, que te dá cinco banhos, que te tira a roupa de raiva, que gasta energia com ventilador. Perdi a capacidade da palavra, de expressar em palavras, de dizer o dizível. Quando canto a voz não sai, quando falo arranho a voz, falo pra dentro, dicção ruim. As coisas aqui parecem que perderam toda o resto de energia que sobraram, como a sacola de plástico que pesa antes de chegar em casa e se enrosca nos dedos assim que chega. Quando eu acho que vou rasgar a sacola de terra e adubo na metade do caminho e não terei como catar tudo de volta e levar pra casa. É, é melhor mesmo deixar tudo ali no chão no meio da rua.
Marrom da terra com o preto do asfalto. Muita coisa aqui é marrom, as cortinas, o sofá, a mesa e as cadeiras são marrons. O piso de cerâmica mal colocados também é marrom, assim como, o armário da cozinha, o tapete do escritório, os vasos de barro já secos e que dissolvem aos poucos. Hoje descobri que as varas das cortinas também são marrons (sempre achei que eram pretas, talvez até sejam). Já eu sou um marrom claro, como de barro que se dissolve facinho na beira do rio e vai deixando a água meio turva, meio opaca, mas que ainda é possível ver a profundeza. Um bege que quer ser invisível, antes fosse.
Meu sapato preferido também é marrom, ele é meio alto, tem um solado duro, resistente, e por ser alto me ajuda a andar mais rápido do que já ando. Me deixa descolado do chão mas não me tira da terra. Tenho uma blusa marrom, a única peça de roupa marrom, o tecido dela é um dos mais confortável de todos que tenho. Olhei para os olhos ao meu lado esperando que uma conversa fosse puxada, mas talvez o silêncio que vem do meu lado seja tão forte quanto o meu próprio silêncio, talvez a pressa que me recebeu seja a mesma que me levou a sair de casa e chegar até aqui. Tem um cansaço nos nossos olhos.
Complemento o marrom com o preto das molduras, das panelas, de metade das roupas, do notebook, da mesa do computador, do colchonete que não uso a dois meses, da chinela, de algumas cestas pequenas de plásticos que uso para separar frascos de produtos de higiene e limpeza do rosto, esses que também a tempos não uso. Alguns livros tem a capa preta, esses são os mais bonitos que tenho. Como é lindo ver um papel preto!
Tem também o preto das bandeiras que estendo na parede branca da sala (sim, elas continuarão brancas). A moldura do espelho no quarto também é marrom e o ventilador é preto. Os olhos dela eu não lembro que cores são, não enxergo bem o suficiente pra ver nem de perto nem de longe.
3 – Apartamento
Algum apartamento vizinho faz um comida com cheiro forte, possivelmente com algum desses tempero pronto, dos que 70% é sódio sabor morte lenta. Mas os cheiros dos vizinhos só vem uma vez perdida, o que mais vem é o cigarro da parede ao lado. Queria que soubesse que a fumaça me incomoda, mas o meu cansaço é maior que meu incomodo, que meu desejo, que minha vontade, que meu querer.
Mais uma vez eu perdi um eclipse lunar, nem tento mais ver. O eclipse lunar mais longo dos últimos 580 anos ocorreu numa sexta-feira, na virada pro dia 20 de novembro. Certo, já faz um tempinho que aconteceu, mas o rolê é que desde então eu percebi que a lua apontava para o meu lado da janela, e que eventualmente, em noites não programadas, ela iluminava o chão da sala, a cama no quarto e a cadeira no escritório. Essa luz branca que a gente falseia com luz azulada no cinema, se liga?!
Tenho estado muito cansado, me cansa sobretudo te dizer que estou cansado. Mas também não sei bem como descansar: é só não fazer nada? Dormir o máximo que puder? Não pensar em nada? Meditar 4 horas por dia? Descansar talvez seja não ler até aqui, não pensar em nada, ficar em silêncio com a cabeça no peito de alguém, e voltar pra casa pra dormir.
A minha rede também é marrom, quase que eu esquecia de comentar isso.