Visto um calção verde escuro, mais escuro que o verde-bandeira. Pesquisei agora a diferença entre o lodo e o musgo, e mesmo sem ler completamente os resultados da rápida busca, rapidamente retorno para a pintura incompleta fixada bem na minha frente. Um verde resultante da sobreposição do azul anil e do amarelo ouro, mas um verde que só vejo sendo verde quando a luz amarela se ascende no compartimento em que eu estou alojado, e partir dai, o verde se ascende. Quando não, vejo o anil, o ouro e o marrom. Visto um calção verde escuro, mais escuro que a bandeira nacional, de um tecido novo recém comprado de uma loja de roupas num dos muitos centros urbanos periféricos da nação. Verde mais escuro que o lodo e o musgo.
Em algum momento de nossa história, que nunca foi história, sentimos saudades como a dificuldade de ir embora. Visto também uma camisa preta de algodão, tão escura quanto as bandeiras que eu mesmo costurei, tão escuras quanto o tempo que nos recobre. Lembrei algumas vezes de você nos últimos dias e percebi a importância de nos desfazermos em nós mesmos, de quebrar o tempo, de cair em queda, e fugir do mundo como quem foge da chuva quando está com roupa nova no corpo.
Hoje tive a sensação de que deveria botar os pés na rua, mas fui adiando o dia inteiro essa ida. Pode ser amanhã, não precisa ser hoje, não. Tem que esperar confirmarem o local para buscar a encomenda, só depois é que tu vai lá nos Correios buscar, torcendo que seja a agência que dá pra ir a pé, porque ai tu pode ir andando (mesmo que todo mundo diga que é melhor chamar pelo aplicativo). Andar é fingir que tá tudo bem, é querer que esteja tudo bem, é a vontade de sentir o suor nas costas e o vento na testa.
A todo instante vinha essa sensação de que deveria colocar os pés na rua, como se tivesse alguém lá fora me chamando, como se eu fosse salvar alguém logo na esquina, ou como se fosse abrir uma fenda no chão do prédio e o fato de eu ter saído de casa tenha sido o que me salvou de ser engolido pelo buraco, como foram engolidos todos os meus vizinhos. Sempre imaginei o botijão de gás explodindo aqui e nunca consegui imaginar o que poderia acontecer com o bairro. Casas que sempre foram coladas umas nas outras, conversas que sempre são ouvidas pelas paredes juntas, onde sussurros nem sempre são sussurros. Estou em vários lugares ao mesmo tempo, não estou em lugar algum, sou um ser estranho aqui.
O que acontece quando um ajuntamento é desfeito pela explosão? Quando explodimos, levamos junto conosco quem estava do lado, ou vamos sozinhos e nos despedaçamos em vários sozinhos?
Aqui onde visto esse calção verde escuro da mesma família do calção vermelho-terra e do calção preto-escuridão, só que de uma geração mais nova, e que espero que dure tanto quanto a anterior, tenho a tendência de achar que tardarei a dormir de noite, mas acabo dormindo sem dificuldades. Aqui onde espero te encontrar na calçada, aqui onde torço para ver a queda do céu.
Amanhã acordarei provavelmente com a mesma sensação de querer colocar os pés na rua, de ouvir a voz, de querer o sol nas costas, de ouvir a voz, de conversar na calçada. Mas o fim dessa história eu não tenho para te dar neste momento. Me despeço como quem foge, como quem escreve a palavra vontade.