Eu nunca perco as coisas, ou nunca perdia as coisas. Exceto canetas e lápis, óbvio, mas isso todo mundo perde desde o ensino fundamental até fica véi. Só que até as canetas eu parei de perder com o passar dos anos: minha estratégia foi comprar sempre o mesmo tipo e marca de caneta, comprava várias duma vez, guardava metade bem escondida, e usava a outra metade. Essa metade deixa sempre num único lugar e sempre nesse mesmo lugar. Quando precisava ia lá, pegava, usava, e voltava pro canto. Mesmo que fosse urgência eu repetia o mesmo ritual. Ai com o tempo quando todas elas acabavam ia na mesma loja comprar outra leva. Acontecia de ver outra marca de caneta, ai resolvi mudar de marca e seguia o meu processo que fazia com a marca anterior. Nesse ritmo mudei de marca de caneta umas três vez nos últimos dez anos.
A caneta que tenho agora é talvez a melhor de todas, embora eu queria muito ter todas os tipos anteriores comigo também. Assim como queria voltar a usar a chinela anterior, aquele que durava quase um ano inteiro, se moldava ao meu pé, aguenta meus calcanhares grandes, e era espessa o suficiente que me deixava dois centímetros longe do chão. A última delas quebrou e o remendo da urgência não funcionou, assim como, não funcionou bem comprar outro tipo de chinela.
Perdi a oportunidade de comprar 5 pares de duma vez para deixar de estoque. Sempre disse que iria fazer isso, aparentemente não deu tempo.
Tempo recente também perdi um livro caro! Um livro que nem li um capítulo direito, um livro, bixo, um livro. Tenho outros três livros emprestados para gente que sei quem é e que sei onde está. Agora esse livro desapareceu como eu queria desaparecer, sinto até inveja dele. Não avisou, não disse que ia pra casa de fulana, que voltaria pra ex, que largaria a faculdade, que mudaria de bairro, que se demitiria dando um grito no chefe. Só sumiu, sumiu igual o pacote de amido de milho que desapareceu da cozinha de casa enquanto eu lavava a louça.
Como poderia me encontrar se eu desapareço?
Eu queria fazer poesia, ou escrever alguma coisa sem métrica ou ritmo literário acertado, mas sempre parecia que pra escrever tu tinha que viver numa cidade fria, que precisava tá nublado lá fora e você sentado na janela tomando um chá, ouvindo uma música calmamente irritante e se inspirando pelo cheiro do orvalho que entra por baixo da porta e pelas fresta da janela. Oh mas que coisa besta!
Uma planta rasa reapareceu depois de décadas sem ser vista. Aqui, no sertão. Ela reaparece sem avisar, apenas chega novamente. Não me parece que seja necessário expor um aviso prévio para quebrar a lógica do tempo e refundar um nascimento de si mesmo. Não me parece que foram esgotadas todas as forças de potência que estão adormecidas em algum ponto entre o invisível, a película que recobre o corpo e a voz. Entre esses três a algo de forte o suficiente para quebrar o espelho, cavar com as próprias mãos, escrever com os dedos do pé na pele de outra pessoa.
“há algo estranho nas coisas que não são ditas” é título de um espetáculo de teatro que nunca cheguei a assistir, e portanto, não sei seu conteúdo, seu texto, suas entrelinhas. Mas essa frase passeia entre os ouvidos doidos e os olhos cansados, ecoa como o som da explosão de um galpão de nitrato de amônio. Entre aparecer, desaparecer, não ser visto e permanecer num certo lugar de invisibilidade – que não é o sistema de invisibilidade pelo poder monumental, mas sim, tornar-se invisível como prática de fuga constante.
Como saber se a planta realmente reapareceu depois de décadas? A percepção do ser extinta e ressurgir é falha, a própria dinâmica da lugar desaparecer versus reaparecer não implica dizer que ela deixou de existir, e ressurgiu feito fogo sem faísca na mata seca. Estar escondida, em completa fuga, sem ser vista, é também uma estratégia das plantas. Ser novamente vista depois do esconderijo não é um descuido, adianto, mas a permissão que se dá para dar-se a ver, permitir que seja vista, que esteja na ótica. E poder se esconder quando puder.
Reaparecer é como dizer: estou viva, apesar de vocês, eu estou viva!
Um comentário sobre “Ah, então era só isso? Só? (ou como encontrar canetas perdidas)”
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