Faz um tempo que tento comprar uma máquina fotográfica analógica. Já olhei o catálogo, vi os preços e fiquei de dar resposta. Meses depois volto e peço de novo o catálogo, espero resposta, fico de dar resposta. Aparentemente minha desculpa sempre é a grana, nunca tem sobrando ao ponto desse luxo – sabendo que não é somente a câmera que precisa comprar, tem também os filmes, as revelações, as digitalizações.
Talvez a dificuldade de ler os textos que eu preciso ler não seja só da ordem da minha ótica limitada mas sim porque no fundo eu não quero ler o que devo ler. Não quero cumprir mais um protocolo social, sabendo que devo cumprir, é minha obrigação cumpri-lo. A gente vive de cumprir essas demandas de ficção da ascensão social, em que os títulos são mais importantes que as caminhadas, em que o que tem em cada linha do currículo conta, mas é quantidade de linhas que vai valer no final. São os números de aprovações, as notas dos lugares. Então eu lembro da câmera fotográfica que ainda não comprei, de uma exigência burocrática de 2019 que me cobram sem motivo algum, de um sorriso que recebi mas até hoje não sei se era verdadeiro o suficiente para ser real.
Pensei em escrever uma história sobre uma música, isso se chama adaptação literária. Inventar personagens, uma linha narrativa, um desencontro. Alguém perdido da cabeça, alguém sem paciência com o outro, e uma tentativa inútil de ficarem juntos. E fim. Tem tantas histórias assim que os roteiristas já deveriam ter entendido que é melhor deixar elas nas músicas mesmo, faz mais sentido, tem mais força, chega mais rápido nas pessoas. Não preciso parar pra ver imagens, esperar que algo acontece, reclamar da escolha idiota do personagem. Não, não precisa, na música a gente apenas sente e pronto.
A música é essa que repito aqui agora na rede, depois do cochilo das seis da tarde bem na hora do angelus. Esse é o tipo de horário que pode acontecer de tudo, desde um silêncio absoluto como se fosse três da madrugada, um congestionamento na volta de casa – já vi também o mesmo silêncio na mesma avenida no mesmo horário mas noutro dia da semana. Também já vi ambulâncias e viaturas as seis horas próxima a minha casa, sempre depois dos tiro vem as luzes, os sons. Já vi dança e música as seis da tarde. Já transei as seis da tarde. Já vi choro coletivo as seis da tarde no dia do anúncio de um golpe. Já te esperei as seis da tarde e vi você chegar quase às oito, disse que tinha que ir embora cedo. Te deixei na metade do caminho.
Hoje de novo lembrei da câmera que não comprei, me parece que lembrar dela é só uma desculpa pra fugir repentinamente dos livros. Ir pros livros é fugir dos jornais. As seis da tarde eu paro num dia. No outro dia as seis da tarde eu finjo que continuo, mesmo que já tenha parado as quatro. As seis da tarde tem crase? Afinal de contas: pra que serve a crase? Porque a gente não diminui a complexidade dessa língua que a gente fala? Escrever “pq” resume os quatro outros porquês, me parece que basta para ser entendido. E eu não vou usar crase aqui não, eu falo por mim: siga você mesmo a sua língua portuguesa.
Aqui onde moro as seis da tarde é silêncio quase total, mas basta virar o ponteiro pras sete que começam as ambulâncias, minutos depois vem os fogos de artifício, depois cachorros. Sempre nessa sequência, nunca muda a ordem. É silêncio, depois ambulância, depois fogos, por último cachorros. Encadeamento de informações me parece importante, como me parece óbvio que é melhor comprar peças de roupas da mesma cor, como todas as cuecas serem pretas, todas as meias pretas, e comprar um kit de dez escovas de dentes de cerdas pretas. As escovas são de bambu e hoje tá mais barato que um ano atrás.
Quando ganhei dinheiro um tempo atrás comprei três pares de sapatos novos, três bem diferentes entre si. Poderia usar em situações diferentes. Poderia não mais me preocupar com sair e me sentir desconfortável em ser visto. Lá atrás a galera não tinha sapato e andava na rua descalços, era a regra que tinham que seguir, andar descalço era obrigação pra mostrar a diferença. Antes disso tinha comprado três calças. Faça as contas ai.
Mas é simples né, coisa besta ter sapato e calça nova pra usar, pra fingir ser gente. Pra ser invisível e não ser notado a gente faz mais do que devia, e eu entendo quem tem que fazer muito.
A gente morre por bem menos.
Usar câmera analógica não nos protege, só cria um ar bonito, nostálgico, estético, como se o tempo tivesse congelado com a gente lá dentro da imagem. Calças, sapatos, cirurgia do canal do dente, rezar na hora do angelus, corta cabelo estilo militar, não usar estampas, não fazer movimentos bruscos, não falar alto, andar com identidade no bolso, abaixar a cabeça. Nada nos protege. Nada nos salva. Enquanto isso a gente fica na espera por notícias boas, se diverte por besteira, finge. Continua fingindo, continua dizendo que tá tudo bem. Continua tentando interpretar o som ao redor da casa mesmo que nada mais faça sentido.