Nas paredes daqui de casa instalei algumas das bandeiras que fiz nos últimos anos. Num é invocada uma fugaimpossível, noutra a o desejo pela revolta, e outra ainda inacabada mas que já denuncia um corpo precário numa nação violenta. Preguei elas nas paredes tanto para ocupar os espaços brancos desse espaço recém ocupado por mim, tanto para lembrar o que estou fazendo neste mundo. Carrego comigo uma pintura feita a muitos anos, uma das primeiras coisas que fiz nessa vida que pode ser denominada arte e obra artística. Da época em que ela foi feito só restou ela mesma, as outras fui guardando enquanto pude, depois fui destruindo elas quando já não fazia sentido tê-las comigo. Quando precisava me despedir daquilo que me deu a entrada nessa vida. Quando já não era preciso ter a guarda física, apenas a memória visual, a lembrança vaga do tempo.
Hoje carrega apenas essa pintura, e prometi a mim mesmo que nunca me desfaria dela. Talvez daqui vinte anos quando eu morrer ela seja a mais cara do acervo de alguma instituição. É isso que fazem com corpos ignorados: esperam e desejam pela sua morte para tornar sua vida instrumento de especulação, de celebração pós-morte, de criação de narrativas que nunca existiram, que nunca foram postas por aquele que morreu.
E onde fica a vida? – a gente se pergunta toda hora no meio do caos que se instalou antes mesmo de chegarmos aqui.
Não tenho tanto medo assim das coisas, talvez tenha medo de algumas poucas coisas pequenas, coisas vagas. Mas não tenho medo do caos, da revolta, do fogo, do motim. Talvez não tenho estrutura física para tal, mas medo não tenho, não. Talvez meu corpo não sustente a correria que o tempo do caos pede, mas medo mesmo, eu não. O mundo é grande, né, e a gente é quase gigante quando busca construir uma ficção de tempo que nos caiba, que caiba as nossas gentes igualmente precárias. Gigante não no sentido de proporção física em relação ao que nos rodeia, mas gigante no sentido de amplidão, de abraço invisível, de quilombo expandido.
Eu sei que é preciso fôlego para se fazer um filme – tento fazer um a alguns anos e imagino outro filme quase todo dia, quando lembro que preciso imaginar – e fôlego me falta muitas vezes. Fôlego não só de respiração, mas um fôlego de coragem, de pulsão, de agilidade nos dedos que escrevem, na cabeça que imagina. Fôôôôlegooo é uma junção de estruturas físicas, invisíveis, internas do corpo, que rodeia a cabeça da gente, que fica preso na área da garganta acumulando energia por tempos e tempos, preste a explodir feito fúria. E para falar de coragem quero dizer que coragem não é antônimo de medo. Quando falta coragem não é porque o medo é grande, quando falta coragem falta também fôlego.
Na parede de frente a minha cama coloquei outra bandeira, mais um estandarte do que uma bandeira, na real. Essa bandeira/estandarte diz: proteja sua memória. Coloquei ela ali para não esquecer nunca do que me move, para não esquecer do que não deve ser esquecido, para lembrar que nossas vidas não podem ser instrumentos de esquecimentos. Para lembrar que nossa condição aqui foi feita na base do apagamento, do esquecimento, da anulação, e que uma memória ativa e viva é essencial para continuar vivendo. Viver para além da historiografia, para além da morte, para além da história da arte, para além das instituições normativas, regulatórias, formativas, econômicas, para além das teorias brancas e reluzentes. Viver para além da ficção do mundo não é abandonar totalmente o mundo e agir como se estivesse noutra fantasia, uma espécie de realidade apartada do mundo que ignora os fatos. Não, não é assim que a roda gira.
Proteja sua memória é uma ação ativa e permanente, interna e externa, individual e coletiva. Não serei eu a proteger a memória da nação, a descolonizar o museu, a refazer o arquivo público. Não é esse o meu papel. Não cabe a mim, ou a você individualmente, a solucionar erros que não foram produzidos por nós e que atingem somente a nós: expulsadas constantemente do mundo. Essa bandeira está ali na parede mesmo que muitas vezes eu passe por ela sem vê-la, sem dar a atenção devida, sem ler novamente as três palavras cravadas no tecido de algodão cru. Ela está ali, eu não preciso olhar para saber que está ali, não preciso ver para saber que estou enxergando.
O medo nos protege de muita coisa, nos fazer pensar antes de avançar, mas o medo não pode ser estacionamento, ele é apenas uma parada de ônibus com cobertura que a gente chega, senta, espera e depois vai embora. Mesmo que seja demorado, que seja cansativo, que nos cause raiva pela demora, mesmo que haja atraso. As vezes a gente só veio parar na parada errada, entrou na rua errada e a parada era na outra esquina, e não nessa de agora.
Não tive medo quando peguei essa pintura e vim com ela pra onde estou, não tive medo quando acordei hoje, quando olhei no espelho, quando abro o saldo bancário, quando olho pro calendário, quando abro o site da loteria, quando clico no link da sala virtual. Por vezes tomo o fôlego sem nem perceber, ele tá lá comigo (e que bom que está comigo).
Eu peço que você proteja a sua memória, que a pessoa que decida seja você, que seja você a pessoa que portará a memória. Confie.
