Às vezes é só pelo barulho, pela algazarra, por colocar a cabeça e o braço para fora da janela do ônibus e sentir algo. Pela euforia. Às vezes é por querer ser divino, querer ser carne, querer ser corpo, querer ser transa. Às vezes é por querer habitar em nós. Por não querer ser verbo. Às vezes é só por querer chegar em casa e esquentar aquela massa de trigo. Às vezes é só pelo monocromatismo das coisas.
Eu sei, a solidão deixa a gente desconfiado, né. Do lado dai cê consegue enxergar algo mais do que isso?
“O que importa é saber pra onde vou”, toca na rádio agora essa música. Na real ela sempre toca quase no mesmo horário, a noite, entre as 19h e 20h, a programação das rádios geralmente são com as mesmas músicas. Pela manhã, por exemplo, é o mesmo conjunto de vinte músicas todos dos dias, de segunda sexta, tanto que estranho quando alguma música está fora do roteiro, ai então percebo que na real mãe está ouvindo outra rádio. Mudar de rádio é dessas nossas faculdades simples, das escolhas que a gente toma sem perceber ou colocar um significado grande nisso.
Eu gosto de ouvir rádio, sempre gostei, desde criança, mas faz tempo que eu não paro para ouvir rádio, tanto tempo que não sei mais se as rádios que eu ouvia ainda estão no ar, ou se estão na mesma frequência, ou se ainda gosto das músicas que tocam nas rádios que eu ouvia anos atrás e que ainda estão no ar. No meu HD tem uns 100GB e pouco de músicas baixadas, tinha um tempo em que eu baixava álbuns toda semana, hoje em dia não mais, perdi a esperteza em achar link de downloads e nem uso serviço pagos de música. Continuo com o meu banco de músicas, continuo ouvindo álbuns inteiros, continuo dormindo e acordando ouvindo música como se tivesse um rádio do lado da minha rede.
Mãe ouve seu rádio todo dia. Eu gosto mais da programação da noite, as músicas são melhores, não que sejam necessariamente o tipo de música que eu tenho baixado um dia, mas eu acho melhor que as da manhã. Dia desses atualizei a biblioteca do celular e percebi que tem coisa que eu realmente não gosto mais, assim como tem álbuns que eu nem lembrava que gostava tanto.
Eu quero distância e aproximação, eu quero um desamor. Aprendi que a gente pode superar tudo, um pai desaparecido, a negação de um trabalho, o abandono afetivo, uma reprovação, um não-dito. Não tenho problema em desistir de algo, quando preciso faço sem b.o. algum. Mas não gosto de adiar as coisas, só faço quando se faz necessário, mas não gosto não, me deixa mal. Por isso prefiro desistir.
Desistir nem sempre é abandonar, desistir também é caminhar. E então, a gente chega mais perto, tenta ficar mais próximo pelo mínimo de tempo possível. E sentir aquilo como instantes que duram mais do que se atrevem a ser. Eu sempre vou lembrar de mim como alguém que existe mas que quer esquecer.
Não presto mais tanta atenção ao jornal na televisão, ouço do quarto, da cozinha, de qualquer canto, como quem só não quer ter o silêncio absoluto, ou a ausência de barulho, dentro de casa. Controlo as horas de trabalho, as vezes esqueço de beber os 3l de água, percebo que o piso do quarto tá quebrando mais rápido que antes, que a gata começou a mijar em algum canto no quintal e não na rua, que as plantas tão secas, que a gente nunca esquece de trocar o calendário da parede no fim do mês, que as laranjas não ficam mais podres pois viram suco antes disso. As roupas no varal levam menos tempo pra secar no varal do que dentro da máquina sendo lavadas, o assento do vaso do banheiro precisa ser trocado, as chuvas passaram então não tem problema ter goteiras no teto.
Lembro de ter coragem, de não andar pra trás, no fim das contas, realmente o que importa é saber para onde quero ir, para onde vou. Continuo aqui sentado na sala ouvindo o som que vem da cozinha, uma vizinha conversando na rua, um celular tocando música, uma televisão anunciando o jornal da noite noutra casa, uma videochamada no cômodo ao lado, uma mobilete passando na avenida. O cachorro da vizinha latindo os 13 latidos seguidos sempre as 19h30, antes as 16h, antes as 10h.
Enquanto isso, alimento minha pressa em andamento, e caminho feito aceleração mesmo estando sentado na sala, mesmo que me parece incompleto, mesmo que ainda não tenho me descolado efetivamente da geografia, das limitações do território geográfico, da urbanidade. Pressa é o que tá aqui, pressa é memória querendo estar viva e não morrer, nunca.