Esse texto é um dos subcapítulos da Introdução da monografia apresentada como conclusão do curso de Cinema e Audiovisual, do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, defendida em dezembro de 2018.
Os buracos ¹
Lembro de ter tido uma aula em que a professora disse algo como: “eu falo aqui sobre a Noovelle Vague porque acredito que seja necessário falar disso, é um movimento super importante para o cinema mundial e que pouca gente conhece esse movimento”. Quando ouvi isso fiquei calado refletindo tudo o que ele significava e simbolizava enquanto discurso dentro de um espaço de formação, como o curso de cinema. Ao chegar em casa faço uma postagem no Facebook usando essa mesma fala ouvida em sala de aula e acrescento uma questão em que eu dizia algo como: “Bom, mas e os outros cinemas que as pessoas também não conhecem, como os vários cinemas africanos, por exemplo? ”
O ano era 2017, mais precisamente o meu sétimo semestre do curso, e a disciplina era voltada para se pensar crítica e curadoria em cinema, e nosso trabalho final seria montar um projeto curatorial de uma mostra de filmes ou um projeto de crítica de filmes. Escolhi montar uma curadoria por entender que seria o momento propicio para incitar e friccionar um pouco as estruturas metodológicas e temáticas brancas daquela disciplina, como uma espécie de resposta a fala de tal professora, além de apontar caminhos de reflexão possíveis para os demais colegas de turma.
Quando se diz em um espaço de formação em cinema, que em tal cinematografia existe uma importância para ser estudada, mesmo que essa mesma produção já seja bastante difundida nas escolas e cursos da área, se reproduz também nas entrelinhas uma prática de invisibilização de outras possibilidades de cinemas. Defender o cinema francês, nesse sentido, é perpetuar a supremacia do cinema europeu em detrimento dos demais cinemas, e reforçar uma ideia de superioridade intelectual e artística. Se por um lado estudamos de forma individualizada a produção da França, da Itália, da Rússia, dos Estados Unidos, e de alguns outros países da Europa e em menor escala algumas raras produções asiáticas, e recebemos também o Cinema Clássico e o Cinema Moderno tendo como base esses mesmos cinemas europeus, por outro lado, pouco (ou quase nada) vemos sobre a produção cinematográfica em países africanos, latino-americanos e no Brasil.
O racismo e o epistemicídio atuou, e continua atuando, de forma tão sistemática que não se fez possível pensar e discutir dentro da atual estrutura acadêmica e pedagógica do curso sobre a existência de um cinema feito em África, ou mesmo, dos vários movimentos de Cinema Negro nos Estados Unidos e no Brasil. Há lacunas, ou verdadeiros abismos, que não é possível preencher da noite para o dia numa simples equação de “A + B = vamos falar sobre cinema africano numa disciplina de vanguardas artísticas”.
Voltando ao ponto da curadoria, a pesquisadora, curadora e diretora criativa Diane Lima² fala da curadoria enquanto invisibilização de práticas artísticas e culturais afro-brasileiras.
[…] o curador é aquele que propõe uma nova lente ao situar tais dispositivos em um espaço-tempo e em uma discussão histórico-social. O termo “curador” deriva do latim curare; ele é, portanto, aquele que cura, cuida, zela por alguma coisa. Mas essa ideia encontra suas primeiras implicações no momento em que levamos em consideração as relações de poder investidas à figura do curador e dois conceitos que são inseparáveis quando se problematiza a invisibilidade e/ou criminalização da produção cultural dos negros no Brasil: racismo estrutural e epistemicídio. (LIMA, Diane, 2016)
A partir desse cenário, me deparo com questões que até aquele momento não me foram tão urgentes ou que ainda não tinham me atravessado tão fortemente, que é justamente o enorme abismo entre raça e cinema. Inicio um longo processo de estudo e pesquisa, ainda no final de 2016, e começo então a discutir e problematizar o lugar do negro no cinema brasileiro, na perspectiva de pensar na construção de um cinema feito por realizadoras e realizadores negros: o Cinema Negro no Brasil. Para nível de entendimento, Cinema Negro é a existência de um cinema feito por realizadores/as negros/as, em que mais do que representação se busca representatividades em todas as esferas do audiovisual, que resulta numa transformação do imaginário sobre o negro e sobre a sociedade.
Buscando em duas formulações importantes que surgem no início dos anos 2000 e que servem até hoje como uma base de discussão sobre o cinema feito por pessoas negras, o Dogma Feijoada e o Manifesto do Recife. Dois textos que levam a pauta racial para todos os âmbitos da produção cinematográfica nacional, desde roteiro, direção, até as políticas públicas que permitam um acesso mais plural e democrático aos meios de produção, entendendo também que a democracia só é plenamente possível no Brasil quando a luta antirracial for uma pauta da nação, além de se presentificar nos meios de comunicação e produção de conhecimentos, como o cinema e o audiovisual. E aqui trago uma consideração importante feita pela Janaina Oliveira³, que vai de encontro ao que tenho dito:
O cinema negro é um projeto em construção no Brasil. Tal projeto tem na busca por autonomia da representação das culturas negras no campo das imagens sua principal missão, tendo para isto que lidar com obstáculos em todas as esferas da produção audiovisual. Historicamente esse projeto se estabelece em relação direta com as lutas dos movimentos negros. É assim nos Estados Unidos, quando pela primeira vez realizadores negros passam a produzir imagens de contra-representação dos negros no cinema. E é assim também no caso brasileiro. (OLIVIERA, Janaina, 2016, p.1)
Kênia Freitas relaciona também a existência do cinema negro, seja no Brasil ou nos Estados Unidos, enquanto uma proposta que busca reverter um apagamento histórico e sistemático.
E, assim, o cinema negro surge como um fragmento narrativo de uma memória coletiva e das memórias individuais que nunca irão compor um discurso totalizante – pois existe, desde a sua mais longínqua origem, como um fragmento, como uma reminiscência de uma/milhões de história(s) apagada(s). (FREITAS, Kênia, 2015, p.6)
Essa pesquisa que me coloquei, que inicialmente estava restrita a um projeto curatorial de uma mostra de cinema para uma disciplina do curso, veio também trazer perguntas chaves como: Quais são as narrativas que nos foram apagadas e negadas pelo cinema hegemônico? Que espaços, telas, funções, papeis e personagens nos foram designados historicamente? Com que caneta foi escrita uma linha histórica que nos colocou à margem do cinema nacional? Onde está o outro cinema e o porquê de sua existência?
Analisando alguns dados vemos que, por exemplo, Adélia Sampaio como a primeira cineasta negra a lançar um longa-metragem no circuito comercial de cinema no Brasil, Amor Maldito, em 1984. E que somente após um hiato de 33 anos uma segunda cineasta negra, Camila de Moraes, consegue lançar no circuito comercial o longa O caso do homem errado, evidenciando o quanto o audiovisual brasileiro repercute a desigualdade racial e social do país, e que não ofereceu durante todo esse histórico espaços possíveis para a presença de cineastas negros/as na produção nacional. Um levantamento da Ancine, que tem como uma de suas principais funções regular a atividade audiovisual no Brasil, analisou 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição no ano de 2016 e revelou, entre outras coisas, que apenas 2,1% dos filmes foram dirigidos ou roteirizado por homens negros. Dentre os 142 filmes, nenhum deles foi dirigido e nem roteirizado por uma mulher negra.
Partindo dessas indagações e dos abismos, tendo em vista os avanços que tivemos, essa pesquisa/estudo vai ao encontro de obras e cineastas da nova geração do Cinema Negro Brasileiro. É preciso, dentre todas essas questões, enxergar o Cinema Negro enquanto movimento artístico e sobretudo político, não podendo ser visto como um nicho cinematográfico, e sim o lugar da afirmação de identidades, narrativas e lugares de falas. Um movimento que luta por espaços nas políticas públicas para o audiovisual, como os editais e chamadas públicas, as leis de incentivo, e o mercado audiovisual como um todo. Pautando por representatividade que sejam plurais e que reverberem em todo a cadeia, desde o roteiro até a circulação em festivais e mostras, e no circuito comercial.
É preciso também uma autoafirmação enquanto cineastas negras e negros na construção e concretização de espaços dentro do audiovisual brasileiro e mundial. Pois é preciso trazer em suas produções os seus lugares de afirmação de potências e construções de narrativas. Nomes que surgem no momento de intenção de ocupação de espaços antes não destinados as pessoas negras, na perspectiva de poder trazer narrativas “escondidas”, e assim construindo novos espaços. Iniciativas como o Laboratório Negras Narrativas e o Diáspora Lab, laboratórios voltados exclusivamente para o desenvolvimento de projetos de roteiristas e realizadores afro-brasileiros, são importantíssimos para preencher uma lacuna e possibilitar que negras e negros possam se inserir de forma mais maciça os espaços de mercado do audiovisual, furando a bolha e ocupando suas cadeiras.
Por fim, me vejo numa espécie de embate entre o Ser artista, estudante e negro. E afirmo que, na medida em que esse trabalho acadêmico cita autores negros, seja no campo das artes, da sociologia, ou de qualquer outra área do conhecimento, não necessariamente significa dizer que o Projeto Político Pedagógico do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará permite ao corpo discente o acesso a tal conteúdo. O PPP tal como ele está, e toda a estrutura curricular e acadêmica nunca permitiu pensar outros cinemas senão o cinema hegemônico europeu. Por outro lado, não quero de forma alguma que a inclusão de tais narrativas seja feita somente para cumprir com uma cota de diversidade na sua “dimensão pseudo-reparativa”, como diz Jota Mombaça, de uma estrutura acadêmica que ainda assim se manterá sob o viés do cinema euro-branco debaixo do guarda-chuva da branquitude.
1 título original do subcapítulo.
2 LIMA, Diane. Diálogos Ausentes e a Curadoria como Ferramenta de Invisibilização das Práticas Artísticas Contemporâneas Afro-Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2016.
3 OLIVEIRA, Janaina. “Kbela” e “Cinzas”: o cinema negro no feminino do “Dogma feijoada” aos dias de hoje. 2016.
4 FREITAS, Kênia (Org.). Afrofuturismo: cinema e música em uma diáspora intergaláctica. 1. ed. Brasil: Caixa Cultural, 2015. 1-97 p.
5 foto destaque Zózimo Bulbul.