Esse texto é um dos subcapítulos da Introdução da monografia apresentada como conclusão do curso de Cinema e Audiovisual, do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, defendida em dezembro de 2018.
Tornar-se roteirista, ou caminhos para um criador de imagens, ou tornar-se algo¹
Lembro de no fim de 2013 e já começando 2014, eu finalizava o ensino médio na EEFM Patronato Sagrada Família – escola pública no Antônio Bezerra na qual passei cerca de 9 (nove) anos de minha vida – e a escolha do curso de graduação no SISU se deu por áreas com as quais eu mais me identificava: Cinema e Audiovisual (UFC), na primeira opção, e Artes Visuais (IFCE), na segunda opção. O resultado foi próximo ao que esperava, poderia passar com folga em qualquer um dos dois cursos, sendo a primeira opção a escolhida, por considerar que haveria a possibilidade de me dedicar ao lugar da escrita e do roteiro, meu principal objetivo naquele momento; e também acreditando no que o curso de cinema me possibilitaria, também, desenvolver trabalhos enquanto artista visual. Dessa forma, escolhendo esse curso eu poderia trabalhar com cinema e com artes visuais de forma sinestésica. Entro, então para o curso de cinema, nessa vontade de poder contar histórias através da escrita, tendo o roteiro como uma possibilidade de criação.
Dou agora um salto, de 2014 para 2018, para costurar aqui um espaço de relato crítico dessa minha relação entre a formação acadêmica e o fazer criativo na escrita, que são os processos para tornar-se roteirista ou algo entre a imagem e as lacunas em que eu me encontro. Aviso de antemão que são reflexões minhas, a partir de uma experiência pessoal dentro do curso de cinema, sendo assim, não representa a totalidade, e sim uma individualidade que é em parte compartilhada com amigos e colegas de curso.
Primeiro acredito que um curso de cinema que se propõe a formar profissionais das mais variadas áreas do audiovisual, sejam elas cineastas, realizadores, produtores ou roteiristas, fotógrafos ou finalizadores, precisa antes de tudo, entender que é preciso oferecer estruturas não só física e de equipamentos, mas também é preciso ter olhares voltados para a construção crítica e de pensamento, tentando compreender as particularidades dos tantos sujeitos que estão ali para receber essa formação. Não adianta oferecer somente uma estrutura curricular que permita a cada estudante realizar o seu próprio percurso – já que metade de nossa carga horária é composto disciplinas optativas –, é necessário possibilitar um acesso mais plural e democrático a todos os aspectos da vida acadêmica, sobretudo no que diz respeito a permanência desses sujeitos dentro da universidade. Não me interessa aqui apontar um culpado, e sim, pensar sobre a estrutura como um todo.
Encarei nesses cinco anos uma dificuldade em conseguir acessar disciplinas voltadas para estudo em roteiro e escrita narrativa, em parte pela ausência dessas disciplinas em certos períodos do curso, em outra parte, por algumas das disciplinas de roteiro que eram ofertadas não oferecerem um estudo mais aprofundado em roteiro. Poderia relatar cada uma das três disciplinas de roteiro que eu cursei nesse percurso, mas o que me interessa aqui é apontar os abismos entre teoria e prática, entre produção de conhecimento e o fazer artístico. Essa histórica carência de disciplinas voltadas para roteiro, e mais do que isso, um maior aprofundamento das estruturas do roteiro e do que se pode alcançar com um roteiro, é relatada não só por mim, mas também por muitos colegas de curso.
Esse desejo que eu tinha/tenho pela escrita, as vezes um tanto “romantizada”, me parece ser um sentimento de crença de que as histórias que se quer construir realmente importam, e que, através delas é possível mudar algo no mundo, como diz a escritora nigeriana Chimamanda Adichie²:
Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem também ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem destruir a dignidade de um povo, mas histórias também podem reparar essa dignidade perdida. […] Quando nós rejeitamos uma única história, quando percebemos que nunca há apenas uma história sobre nenhum lugar, nós reconquistamos um tipo de paraíso. (ADICHIE, Chimamanda. 2009, s/p)
Lembro que no final de um semestre eu resolvi escrever simultaneamente vários roteiros de curta-metragem, numa tamanha ingenuidade e também fé de que a escrita me “salvaria” do mundo. Voltar hoje para esses roteiros e lê-los é como rememorar o meu desejo de criar e contar histórias. Histórias simples, ingênuas, e não tão bem escritas, mas que revelam possibilidades e vontades de pôr no papel a importância de um outro olhar sobre o mundo, que o modifique, o transforme. Há histórias que apenas eu, ou você, podemos contar, e é essa propriedade na escrita, no fazer criativo, que nasce de vontades de mostrar a outras pessoas a ressignificação das suas próprias narrativas e, é exatamente isso que me interessa enquanto roteirista.
Pensando nisso, em 2017 participo de dois laboratórios de roteiro com o meu projeto de curta-metragem intitulado O doce cheiro que vem dos seus olhos, um roteiro de ficção que eu tenho bastante carinho pois trata sobretudo acerca de subjetividades, onde trago a minha vontade de refletir sobre sexualidade, afeto e amizade. O primeiro laboratório que participei foi o Laboratório de Roteiros Sal Grosso, promovido pelo 20º Festival Brasileiro de Cinema Universitário, em setembro no Rio de Janeiro, com três dias de orientações e ao final um pitching. O segundo foi o Lab Negras Narrativas, laboratório voltado exclusivamente para roteiristas negros/as, realizado no mês de dezembro em São Paulo, promovido pela Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), dessa vez, sendo em uma semana de imersão no roteiro, e também com um pitching ao final.
Ter diariamente retornos diversos sobre o roteiro, que mesmo com visões distintas convergiam entre si, me ajudaram a reafirmar o tipo de narrativa fílmica que estava me propondo a construir. Além de me colocar no lugar da escuta, de buscar lidar com as sugestões e críticas de forma a amadurecer a história e a narrativa em pontos em que estava em dificuldades de alcançar, e que só foi possível a partir da existência desses espaços de encontro e partilha. Me coloquei também no lugar de pensar mais sobre como tatear e criar mais movimentos para a história e em grande parte, de conseguir traduzir em palavras, meus desejos e motivações para esse projeto de filme. Participar desses dois laboratórios foi importantíssimo para o amadurecimento do filme enquanto proposta estética, mas sobretudo, foi um passo essencial no meu percurso enquanto um roteirista em formação.
Já mais recentemente, em outubro de 2018, participo de mais um laboratório de roteiro, dessa vez em Cachoeira (BA) dentro do Diáspora Lab, laboratório de imersão em roteiros de longas-metragens escritos por roteiristas negros/as da região do CONNE. O projeto que levei para o lab foi o CABRAL, projeto de roteiro de longa-metragem que sobre o qual falarei mais detalhadamente na Parte 2 deste trabalho.
Preciso evidenciar que o estímulo em me colocar dentro desses laboratórios não vem de um incentivo acadêmico proporcionado pelo curso de Cinema, muito pelo contrário, vem de um esforço pessoal movido por uma vontade de me afirmar enquanto artista e roteirista. Vem de uma busca por escavar locais de afirmação e ocupação de cadeiras nos locais de visibilidade do circuito do cinema nacional e do mercado audiovisual como um todo. Três laboratórios de muitos que virão pela frente.
Ao sair do último laboratório, retorno a Fortaleza com um livro sobre a obra do cineasta ganês John Akomfrah (foto em destaque). Encarei um encontro entre um texto presente no livro e com o que já estava refletindo a um tempo, que é justamente o que trago logo no título desse subcapítulo: tornar-se roteirista. Pois como John diz, “o processo de “tornar-se” qualquer coisa é estranhamente difícil de traçar. E com a “chegada” das categorias, ficou ainda mais difícil”. (AKOMFRAH, John. 2017, p. 31)³. Tornar-se roteirista é, portanto, uma grande incógnita para mim e para pessoas negras de forma geral. Uma fala que me chegou bastante recorrente vinda de roteiristas, principalmente de mulheres negras, é a da dificuldade de se afirmar enquanto roteiristas e o quanto tempo demorou para se conseguir chegar nos lugares e responder à pergunta: “o que você faz da vida? ”, com a seguinte resposta: “eu sou roteirista”. Essa resposta chega muito tarde na trajetória de muitos/as roteiristas negros/as, ela não é uma afirmação instantânea e, muitas vezes, vem munida de uma certa inferioridade em relação ao outro, como se não nos fosse permitido a ousadia de se dizer “roteirista”. Mais uma vez, são as marcas do racismo estrutural operando nos nossos corpos racializados.
Então pergunto: quem pode se afirmar roteirista? É possível para um jovem artista negro, mesmo sem uma trajetória ou percurso de trabalho, sem ter vendido roteiros ou mesmo ganhado prêmio de roteiro em festival ou mostra de cinema, se afirmar roteirista para o circuito e mercado do audiovisual? Quem delimita quem pode ou não se colocar enquanto roteirista nesses espaços de mercado? O que é preciso e quem delimita isso para que tal afirmação possa ser validada? É possível para esse corpo racializado se implicar nas narrativas e construir suas próprias imagens? O que pode (para o futuro) um corpo invisível que se torna aos poucos visível? E ainda, o que pode um/a roteirista negro/a numa academia branca?
Para mim, é necessário, nesse momento, trazer muito mais as perguntas e as dúvidas, do que necessariamente as possíveis respostas. E sinto que talvez um termo razoável a se usar seja: eu me autorizo a ser roteirista, logo, me faço roteirista. O “fazer-se algo” me parece ser um caminho para o “tornar-se algo”; a cada dia, a cada história que precisa ser contada, a cada vontade e linhas escrita no papel ou na tela do computador. Pois como disse Zózimo, “nós temos uma história que precisa ser contada através do audiovisual por nós” (2011).
1 título original do subcapítulo
2 ADICHIE, Chimamanda. O perigo de uma única história. In TED Global 2009. Disponível aqui.
3 AKONFRAH, John. “A memória e as morfologias da diferença” In: MURARI, Lucas; SOMBRA, Rodrigo (orgs). O cinema de John Akonfrah – espectros da diáspora. Rio de Janeiro: LDC, 2017.
4 Entrevista Zózimo Bulbul in Programa 3a1. TV Brasil, 2011. Disponível em <https://youtu.be/dUuo_tTKkMQ / https://youtu.be/_r7WqQSzghg / https://youtu.be/Gx4WzZt5ssM>