[Fotografia de barraco no início da ocupação do Pici, bairro de periferia de Fortaleza (CE), anos 80/90. Acervo da Associação de Moradores do Campus do Pici.]
Primeiro vejo o breu. Após um instante, meus olhos começam a tentar se acostumar com a fresta de luz que vai adentrando. Logo em seguida, um buraco se abre e a luz branca vai invadindo ferozmente. Vejo ao longe a terra firme, nativa ou completamente devastada, campos vastos, espaços ocos, vazios deixados pela bala e pelo fogo colonial, e doutros corpos que já haviam sido dilacerados por ali. Senti o cheiro vermelho invadindo minhas narinas e uma fina dor aguda atiçando a minha coluna vertebral no mesmo instante em que gritos graves são ouvidos por quem estava ao meu redor.
Antes da aterrissagem, vi um grande oceano que levou até ali e, que por ele se acessa o tão chamado Novo Mundo. Pelo caminho, muitos morreram, de dor, de fome, de desespero, de doenças e de saudade. Banzo, ah o banzo. Corpos jogados aos mares, saudados a uma mãe que os recebe e os guarda no mais profundo, mais íntimo. Cemitério marítimo. Navio tumbeiro. Uma diáspora involuntária. Vejo, além daqueles corpos, o meu próprio corpo franzino doído na coluna, com meus membros desproporcional e quase cego. Vejo amigos, amores, família. Vejo o tempo, sinto o tempo que a gente tem nas costas, que nos põe em movimento, que nos mastiga.
Naquele dia saí de casa sem saber o caminho, dei uma volta na praça perto de casa; aliás, foi uma volta pelo Centro da cidade, mas que logo retorno para casa, cansado e sem me sentir melhor. Andei por ruas que antes serviam de comércio de corpos no tempo passado, de carregadores de água, de puxadores de carroças. Quando chego em casa vejo sentada na cadeira na sala, minha mãe com os olhos tristes pensando no presente e no futuro, no que teria para o dia seguinte e nas paredes de nossa casa que precisam urgentemente mudar de estrutura, de espessura e de forma. Vejo os cupins que sempre aparecem para nos atormentar, olho para o teto e vejo as madeiras fracas sendo sustentadas somente por Deus, de D maiúsculo mesmo. Ouço o trotar dos cavalos que visitam as ruas do bairro desde o último mês de setembro. Só ouço, mas nunca vi os tais cavalos andando na rua de casa, só sei que passam sempre as onze da noite, de segunda a segunda, domingo a domingo.
Vejo a estrutura dos corpos dos meus amigos, me esforço para ver o que veio antes deles, o que veio antes de nós. Vejo minha vó materna, o pai e a mãe dela. E assim, vejo também um pouco antes deles. E ao vê-los, sinto hoje como se as invasões do opressor contra nós nunca terminaram: ao revirar as casas atrás de nos impor um crime que nós não cometemos, ao balear no couro sem saber a identidade, ao prender e encarcerar nos camburões negreiros, ao internar os desajustados a norma deles, ao transformar uma vítima em algoz. Vejo meus amigos sendo perseguidos por olhos que seguram suas bolsas contra o próprio corpo, olhos de medo que mudam de calçada, que fingem não ser deles o problema da retina.
Vejo alguns amores que tive, vejo meu corpo entrelaçado a outro corpo, mas vejo ainda minha camisa cobrindo o espelho do banheiro toda vez que eu vou tomar banho. Ouço uma amiga dizer que a nossa baixa autoestima vem lá de trás, de muito antes, e percebo o silêncio ecoando em nós dois após essas palavras. Repito para meus amigos que não tem volta, não tem sequer um passo para trás, não tem passado algum que nos prenderá ao chicote, ao tronco, ao armário ou ao navio. E peço para que vejam cada um, a palma de sua mão. As linhas traçadas na pele e as rotas de fuga desenhadas na cabeça. Nagô! Não tem IBGE algum para medir a nossa dor, a nossa raiva, a nossa força. Eu sei ser trovão! Eu vou ser trovão![1]
I Am Not Your Negro[2]. Eu não sou seu negro. Abaixe o vidro do carro e tire o capacete quando subir no nosso morro, quilombo moderno, bit pesado. Diminua o tom de voz para falar sobre nós, baixe a bola e não tente nos enganar com a sua narrativa etnográfica. Não nos venha pedir calma, paciência, apontar o dedo. Não estamos aqui para pedir licença, nem desculpas, estamos para conquistar o que é nosso por direito. Medo? Pode ficar com o seu, pois nos tiraram tanto que até o medo nos tiraram. E sinto muito, parça, vocês não mais passarão impunes[3] no fim do mundo!
Senhor Deus dos desgraçados! / Dizei-me vós, Senhor Deus, / Se eu deliro… ou se é verdade / Tanto horror perante os céus?!… / Ó mar, por que não apagas / Co’a esponja de tuas vagas / Do teu manto este borrão? / Astros! noites! tempestades! / Rolai das imensidades! / Varrei os mares, tufão! … (ALVES, Alves, 1883)
Tempo, tempo a gente tem esse tempo doido né, marcado por relógio. Mas a gente tem um tempo que tá ai sempre em movimento. Qual é o tempo de ser e fazer? Qual é o meu tempo? O que fazer agora e o que deixar pra depois? A gente precisa disso, ter tempo para a sua, a sua espiritualidade. Sua essência. Todo mundo pode ter isso. Todo mundo tem. As vezes a gente perde porque a gente não alimenta. Essa auto-espiritualidade que todo mundo tem que não é religião nenhuma, grupo religioso nenhum que dá. É o que é a gente, o que está na gente. Tempo é o vento, tempo é o tempo material, é o tempo imaterial. Tempo é tempo. Relo é tempo. (VALDINA, Makota, 2016, s/p)
[1] Frase retirada da música “Iodo”, da cantora Luedji Luna.
[2] Essa frase é título do filme dirigido pelo cineasta Raoul Peck baseado no livro inacabado do ativista e escritor afro-americano James Baldwin.
[3] O trecho “parça, vocês não mais passarão impunes” é retirado da poesia “Mandume” da poeta e escritora Mel Duarte, presente na parte final da música “Madume”, do cantor Emicida com participação de Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin.